Gravações secretas citadas por advogados de Isabel dos Santos num processo judicial em Londres alegam que os ficheiros relativos ao caso “Luanda Leaks” foram entregues pelos serviços secretos angolanos ao pirata informático Rui Pinto e que – como Folha 8 revelou em 19 de Janeiro de 2020 – uma cópia “seguiu de Luanda para Lisboa numa mala diplomática”.
Os documentos foram depositados na semana passada junto do Tribunal Comercial do Tribunal Superior de Londres no âmbito do processo judicial da empresa de telecomunicações Unitel contra a Unitel International Holdings (UIH), detida por Isabel dos Santos, para recuperar uma dívida de mais de 350 milhões de euros.
Nos documentos, os advogados dizem que usaram os serviços da agência de investigação privada israelita Black Cube para “expor os responsáveis das acções contra Isabel dos Santos e as suas motivações” e citam várias personalidade próximas da actual administração angolana.
“A investigação da Black Cube revelou que a nova administração é a fonte dos `Luanda Leaks`, tendo sido a orquestradora e executora do acesso ilegal dos servidores de Isabel dos Santos, bem como dos seus associados e prestadores de serviços, incluindo escritórios de advocacia encarregados de blindar a sua defesa”, lê-se.
Os investigadores citam como fonte Mirco Martins, enteado do ex-presidente da Sonangol, Manuel Vicente, que terá afirmado que “os documentos foram entregues pela nova administração angolana a um `português` (Rui Pinto) por intermédio do então ministro angolano dos Negócios Estrangeiros, Manuel Augusto”, que terá também pedido a colaboração para, através da “imunidade” dos detentores de malas diplomáticas, fazer chegar a Lisboa uma cópia do mesmo dossier.
Micro Martins terá dito: “O nosso Serviço Secreto deu a informação… a MA (Manuel Augusto)” e “o Serviço Secreto deu aquilo para lixar a Isabel dos Santos”.
As acusações fazem parte de um documento com informações adicionais para contestar a acusação da Unitel, na qual os advogados do antigo presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, alegam que Isabel dos Santos está a ser vítima de perseguição do Presidente João Lourenço.
As gravações citam também N’gunu Tiny, conhecido por “menino de ouro” (angolano) das finanças, empresário e advogado que trabalhou na sociedade CFA Advogados, escritório que representa a Sonangol, Inocêncio das Neves, sobrinho do porta-voz e assessor do Presidente Lourenço, Luís Fernando, Leandro Laborinho, filho do ministro do Interior, Eugénio César Laborinho, e o administrador da Sonangol Carlos Saturnino Guerra Sousa e Oliveira.
Segundo os advogados, a Black Cube foi inicialmente contratada para “investigar as circunstâncias que levaram ao resultado na Arbitragem ICC entre os accionistas da Unitel”, nos finais de 2017, e que depois foi “alargada para expor os responsáveis das acções contra dos Santos e as suas motivações”.
Questionada pela Lusa, uma advogada da empresária angolana disse que “as provas apresentadas ao Supremo Tribunal de Londres foram recolhidas por meios inteiramente legais” e que os procedimentos operacionais e metodologias foram feitos de acordo com a orientação dos assessores jurídicos.
“A Black Cube foi contratada devido à sua experiência na recolha e análise de informação, especificamente no apoio a processos judiciais e arbitragens de extraordinária complexidade e âmbito internacional”, disse Michelle Duncan.
O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação (ICIJ) divulgou em Janeiro de 2020 mais de 715 mil ficheiros, sob o nome de `Luanda Leaks`, que detalham alegados esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo, que entretanto morreu, que lhes terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano através de paraísos fiscais. Como o Folha 8 também divulgou na altura, muita desta documentação não poderia ter outra origem que não fosse a própria Isabel dos Santos, ou o mais íntimo círculo do núcleo duro de João Lourenço.
De acordo com a leitura jornalística e conforme o guião pré-definido, da qual fazem parte em Portugal o jornal Expresso e a SIC, Isabel dos Santos terá montado um esquema que lhe permitiu desviar mais de 100 milhões de dólares (90 milhões de euros) para uma empresa sediada no Dubai, a Matter Business Solutions.
Rui Pinto está a ser julgado em Portugal no âmbito do caso `Football Leaks`, tendo sido acusado de crimes de acesso indevido, violação de correspondência e acesso ilegítimo visando entidades como o Sporting, a Doyen, a sociedade de advogados PLMJ, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Em Maio de 2020, Isabel dos Santos acusou Angola e Portugal de terem usado como prova no arresto de bens um passaporte falsificado, com assinatura do mestre do kung-fu e actor de cinema já falecido, Bruce Lee.
Segundo um comunicado da empresária, o Estado angolano terá usado como prova para fazer o arresto preventivo de bens “um passaporte grosseiramente falsificado, com uma fotografia tirada da Internet, data de nascimento incorrecta e uso de palavras em inglês, entre outros “sinais de falsificação”.
“Os factos e imagens falam por si. A verdade hoje chega ao de cima sobre o fraudulento processo de arresto, baseado em provas forjadas e falsificações. Contra factos não há argumentos. Um “Passaporte Falso” foi dado pelo Tribunal como sendo meu”, afirma Isabel dos Santos.
O passaporte em causa terá sido usado como prova em tribunal pela Procuradoria-Geral da República de Angola para demonstrar que Isabel dos Santos pretendia ilegalmente exportar capitais para o Japão, alega a filha do antigo Presidente angolano José Eduardo dos Santos e alvo a “abater” na suposta luta contra a corrupção encetada por João Lourenço.
A empresária acusa a PGR que desde sempre foi uma sucursal do MPLA e não um organismo independente ao serviço de Angola, de fazer uma “utilização fraudulenta do sistema de justiça de Angola” para se apoderar do seu património empresarial e apela à justiça portuguesa, que decidiu cooperar servil e cegamente com Angola, e executou vários arrestos em Portugal, para que “à luz desta denúncia e de outras que se seguirão, “reavaliar estas execuções às cegas”.
Independentemente das teses da PGR angolana e de Isabel dos Santos, já não restam dúvidas de que todo o processo, para além de mostrar que os seus pés de barro estão a desmoronar-se, é um acerto de contas mal feito e politicamente letal para as partes envolvidas.
“Arrestar não só os bens pessoais, como o produto de contas bancárias, mas os activos que constituem o império económico e financeiro de Isabel dos Santos em Portugal, como a NOS, o EuroBic ou a Efacec, é fundamental para começar a desmontar este império sujo que Isabel dos Santos criou com enorme cumplicidade das autoridades políticas e regulatórias portuguesas”, afirmou João Paulo Batalha, então presidente da direcção da Associação Cívica Integridade e Transparência, no dia 15 de Abril à DW, comentando a decisão da justiça portuguesa, tomada em Março, de congelar as participações da filha do ex-Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, em empresas como a NOS e Efacec.
Para João Paulo Batalha, este é um passo importante para evitar que Isabel dos Santos fuja com o referido património e se ponha a salvo da justiça, quer portuguesa quer angolana. Em Janeiro deste ano, as autoridades angolanas solicitaram a colaboração da justiça portuguesa para o arresto das participações que Isabel dos Santos detém nas sociedades NOS, Efacec e no Eurobic, como via para obter garantia de retorno patrimonial de 1,2 mil milhões de dólares (cerca de 1,15 milhões de euros).
Em Abril de 2020, a Winterfell, empresa de Isabel dos Santos que controlava a Efacec, acusou a justiça angolana de provocar “danos injustificáveis” às empresas portuguesas e estar a usar indevidamente a justiça em Portugal para “fins não legais e desproporcionais”.
Em comunicado então citado pela agência Lusa, a empresa salientou que a justiça angolana, além de ter arrestado bens num valor superior ao suposto crédito reclamado a Isabel dos Santos (1,1 mil milhões de euros), dá um tratamento diferente a empresas portuguesas e angolanas, solicitando medidas judiciais em Portugal que não foram aplicadas em Angola.
Como exemplo, a Winterfell lembra que, em Angola, “o procurador não solicitou o bloqueio das contas das empresas, nem impediu que fossem pagos salários, rendas, impostos, água e luz”, enquanto em Portugal “pediu o bloqueio das contas, impedindo-as de operar e forçando a sua insolvência, levando ao despedimento de uma centena de trabalhadores”, situação agravada pela crise decorrente da pandemia de Covid-19.
A PGR angolana deu um passo maior do que a perna e agora não sabe como é que há-de descalçar a bota. E, portanto, está de alguma forma a tentar que a justiça portuguesa faça o trabalho que ela não consegue (nem sabe) fazer.
O próprio processo movido contra Isabel dos Santos é um processo juridicamente mal feito e que politicamente tenta mostrar uma realidade que, de facto, não corresponde aos factos. Quer o Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, quer a justiça portuguesa, em geral, não têm a noção de que este é um caso político, um acerto de contas mal feito por parte da PGR angolana.
João Paulo Batalha nas declarações à DW mostrou-se esperançado que seja possível devolver ao povo angolano grande parte dos activos desviados, mas considera também fundamental investigar a origem da fortuna de Isabel dos Santos e os crimes de corrupção, de favorecimento e de branqueamento de capitais que eventualmente lhe são imputados, respectivamente em Angola e Portugal. O então presidente da Integridade e Transparência considera que a justiça portuguesa continua a agir de forma tímida e pede mais investigação sobre as cumplicidades políticas e económicas que permitiram à filha primogénita de José Eduardo dos Santos ser tão bem recebida em Portugal e acumular o seu vasto património.
Em causa, afirmou, estão “as responsabilidades não só de Isabel dos Santos, mas de toda esta rede que a ajudou a montar todo este império e que continua provavelmente activa no apoio a outras altas figuras do Estado angolano”, também elas com fortunas de origem suspeita ou desconhecida e que continuam a fazer negócios e a trazer para Portugal muita riqueza acumulada de forma suspeita.
Na época, a plataforma Projecto de Investigação ao Crime Organizado e Corrupção (OCCRP, sigla em inglês), revelou que mais de uma dezena de entidades de influência da elite angolana e seus familiares usaram o sistema bancário para desviar centenas de milhões de dólares para fora do país, incluindo companhias alegadamente associadas a Isabel dos Santos.
Folha 8 com Lusa